4.9.06

Nem com maçãs te apago


Acordara mais cedo do que o habitual naquele dia e pensou ter engolido um sol. Sim! Um sol inteiro, quente e bulboso tal era o calor e a sede que sentia.
Soube desde logo que aquele não era um calor comum. Já o tinha sentido em tempos mas a chuva de fim de Inverno tinha-o conseguido apagar. Depois quando pressentia que o calor pudesse chegar, tratava de abrir a caixa de novelos que guardava no sótão e fiar uma mais história. Depois outra e depois outra, cada uma delas mais gélida que a anterior de forma que o Verão não chegasse.
Temeu o Verão mais do que qualquer outra das estações. Naquela manhã de Setembro, enquanto outros se preparavam para o arrumar na mala, sentiu a sua chegada. Era silenciosa para todos, menos para si. Em vez do sossego que todos pareciam sentir, ouvia a voz desse sol inteiro dentro de si.

Familiar como era, aquele calor, resolveu matá-lo, não com histórias contadas de “eu para eu”, mas com maçãs. Era isso! Sim! Maçãs! Passaria o dia a maçãs… umas depois das outras. Primeiro, vermelhas cor-de-sangue e depois outras tantas verdes (do verde mais frio e ácido que conseguisse encontrar). Se entretanto o calor persistisse comeria garfadas de gelo e mergulharia até ao fundo do oceano, não para falar com peixes mas para apagar aquele estranho arder.

A passagem do dia seria vagarosa, tão vagarosa que sentiria o lento andar dos segundos no grande relógio que cantava na sua pequena casa cor-de-rosa. O sol que sentia dentro de si parecia ter-se alastrado e infectado a própria casa, que, agora, pulsava como um coração gigantesco e contentor.
Seguiria o plano agendado e o verão daria lugar a um Outono precoce… Sim, tinha de ser! Não gostava do Verão – já o decidira e não voltaria atrás com tão pesada decisão. Odiaria o Verão, como até aí. Aquele era , afinal, um dia como os outros, marcado (talvez sim) de forma diferente no seu calendário… mas um dia como os outros.

Com o cair da noite, vestiu o linho mais fresco que tinha no armário, não fosse a temperatura subir outra vez e esfregou-se nas maçãs de pele castanha e áspera como a língua de gatos e de cheiro intenso, que lhe cobriam o chão do quarto.
Olhou uma última vez para o relógio barulhento. Mais umas horas e o novo dia chegaria. Se evitasse trocas de olhares, o sol apagar-se-ia assim como se tinha aceso, pensou.
Tudo correria como planeado a não ser por dois ou três lapsos - teriam sido mesmo tão poucos? Sentiria o sol crescer mais uma vez e nem mesmo o virar do calendário pareceria afectá-lo.

O convite para o mergulho tardio parecera-lhe, então, tão tentador como acertado. Mergulharia até ao fundo. Sim! Era esse o novo plano. Desde que evitasse ostras, o sol apagar-se-ia.
Não se viria a apagar, no entanto.
O calor, como uma infecção, passaria para a água do mar e para o corpo ao lado, ou teria sido ao contrário?
Parou de tentar contê-lo. Agarrou-o com ambas as mãos e saboreou-o sofregamente como se de uma sardinha assada se tratasse.
Sim chegara o Verão para si também e não o conseguira evitar. Tinha-se rendido a ele e à geografia dos seus próprios limites.


Não culparia aquele estranho sumo rosado com frutos a boiar. Não culparia sequer as maçãs ou o gelo que de tão quente não tinha apagado o sol. Não culparia sequer os olhos que teimavam em aparecer aqui e ali.
Culparia cada um dos novelos. Culparia cada uma das histórias por eles contadas. Culparia a casa que pulsava.
Sim… Chegara o Verão!

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