8.4.07

A Espera

Ao se desenhar mais uma fronteira, com a manhã fria e incandescente como o sol a bater na neve, fechavam-se olhos e adormeciam-se mãos.

A tarde, lenta e morna, com o seu vagaroso compasso de horas e minutos, cheia de nadas, estender-se-ia até ao toque do telemóvel.

6.4.07

Desejo II



Esta noite, os sonhos tidos foram a dormir, descontrolados e sem rédeas – não entravas em nenhum deles. Esta noite não houve tempo para mantas ou pernas febris – ficaram presos ao ontem. Esta noite, sem cerveja, vinho ou cafés, não houve tempo para dedos entrelaçados ou espasmos corporais – os ais são só meus?

Noite houve, atrás de uma janela por onde se olha para dentro e nunca para fora, em que carne nunca pareceu, tanto, carne - sem, no entanto, ser, sequer, consumida com sofreguidão.
Fronteiras de carne e músculo, aprisionam uma força bruta de ser, querer e vencer.

E hoje? Hoje, chove-lhe no tecto da boca, das nuvens que alberga na língua – do que não deu. Hoje, espera carta enviada mesmo que tardiamente – o selo é excusado. Hoje, espera-te no sítio do costume – ou, mesmo, noutro qualquer – para que com um sorriso, um outro arrebatas.

“Podias ser a última boneca russa… e eu deixava-te usar a coroa”, pensa alto essa estrela moribunda.


Hoje, borda um coração cor de sangue numa tela branca – armadura para coração ou coração elevado a jóia?

Desejo


"Laura observa. A casa de jantar parece-lhe, neste momento, a mais perfeita sala de jantar que se possa imaginar, com as suas paredes de cor verde-amarelada e a arca de bordo escura que guarda um tesouro de objectos de prata, presentes de casamento. A sala parece-lhe quase impossivelmente cheia: cheia com as vidas do seu marido e do seu filho, cheia com o futuro. Tem importância. Brilha. Grande parte do mundo, países inteiros, foram dizimados, mas uma força que dá inequivocamente uma sensação de bondade prevaleceu; parece-lhe que até Kitty será curada pela ciência médica. Ela curar-se-á. E, se não se curar, se já não for possível ajudá-la, Dan, Laura e o filho de ambos, e a promessa do segundo filho, continuarão aqui, nesta sala, onde um rapazinho franze a testa, concentrado na tarefa de tirar as velas do bolo, e onde o seu pai aproxima uma delas da sua boca e o convida a lamber a cobertura do doce.

Laura lê o momento enquanto ele passa. Aqui está, pensa; já lá vai. A página está prestes a ser virada.

Sorri ao filho, serenamente, de longe. Ele retribui-lhe o sorriso. Depois lambe a ponta de uma vela apagada e pensa noutro desejo, que pede seja satisfeito."
Cunningham, Michael.(2003) As Horas. Lisboa: Gradiva Editora. P.203

5.4.07

Rosa-Carne


Na véspera de sexta-feira santa, tricotava-te esse coração de pedras e contas vermelhas em linho branco, na ressaca do vinho que bebemos. O quadro sob a tela sentia o esticar da pele, de cada vez que a agulha a perfurava, de tal forma que o pequeno grande músculo ficaria dorido. Ali, o calor excessivo do quarto fazia lembrar as horas em que a temperatura em baixo dos lençois incomodava os corpos.
No resto da casa um cheiro a ervilhas empestava o ar, enchendo o vazio do jejuar dos poucos crentes que por ali habitavam.

Recordaria, a tempo, que não acreditava em restrições morais, nem celebrava dias santos e na sexta-feira comeria carne (deliciando-se), esperando que também o fizesses.